Luzia Gomes Ferreira - Universidade Federal da Bahia
Em lugar de negar-lhes a história faríamos
melhor se ouvíssemos as histórias que têm para contar. E quando o fizermos é
possível que suas artes venham a ser, não as 'artes dos povos sem história’,
mas sim as 'artes dos povos com outras histórias'.
Sally Price
INTRODUÇÃO
Os diversos povos africanos, através das suas manifestações artísticas,
possibilitaram aos ocidentais uma nova concepção de arte e do belo. Por ser a
arte africana muito ampla, a obra de arte a ser priorizada nesse trabalho serão
as Máscaras Africanas, especificamente as Máscaras Geledés. Esse trabalho
pretende, a priori, fazer uma abordagem sobre as características da arte africana,
e identificar de que forma essa arte está apresentada nos livros de História da
Arte. No segundo momento irá se analisar as Máscaras Geledés evidenciando a
importância da mulher na sociedade yorubana, de que forma as máscaras são usadas
nos rituais da Sociedade Geledé e qual a sua função. Também será realizada uma
análise sobre o processo de releituras das máscaras africanas, na Bahia através
do Folguedo Zambiapunga e o Candomblé dos Egunguns.
ARTE AFRICANA
A África desempenhou um importante papel na História da Humanidade, uma
vez que, neste continente foram encontrados os primeiros vestígios do ser
humano na terra. Através desta constatação fica evidente que as produções
artísticas dos diversos povos africanos, é uma das mais antigas do mundo. Há
estudos que comprovam a existência de pinturas rupestres na Namíbia que datam
vinte mil anos; e que no norte da Nigéria, no primeiro milênio a.C, já se produziam
esculturas de terracota.
A arte africana possui características que lhes são peculiares. A obra aparece
como um bem coletivo útil e sagrado, no qual está inserido no cotidiano das
pessoas que a produz; o “belo” deve ser apreciado por todos; e não por um grupo
seleto, como acontece na sociedade ocidental. A arte ocidental é uma criação
individual, em que o artista tem que expressar toda sua
Ver Cátalogo da exposição MAMAFRICA, realizada no museu de Arte Moderna da
Bahia em 1997. individualidade para se destacar dos demais. As características
tão singulares da arte africana fizeram com que durante muito tempo ela fosse
vista pelo ocidente como uma "arte inferior". Não se considerou o
fato de que a arte por ser produção humana, é diversa. Os ocidentais analisavam
a obra de arte africana dentro dos seus próprios parâmetros, dentro da sua
concepção do "belo universal". Mas, como afirma o professor Sodré:
"A arte africana é uma outra forma de manifestação da sensibilidade
humana, tão variável quanto à diversidade cultural do nosso planeta”. Ou segundo Salum: 'Étnica', religiosa – toda
arte ameaçada pela anulação dos seus autores é codificada de simbólica. Porém, a
arte de origem, da África, e a arte negra do aqui-agora constituem uma criação
ontológica, e não social propriamente. É uma arte em que a figura humana é
plena e revestida de totalidade. Ideológica ou não, sua genuidade está na
reflexão-do-homem- sobre-o-homem-pelo-homem, dentro de um ideário cultural,
sim, o que não quer dizer que não haja diferenças na arte negra, tradicional ou
moderna – nem da África, nem do Brasil.
Isso explica o problema da individualidade na arte africana e na arte negra,
sempre considerada em seu caráter 'coletivo' sociológico, e por isso diminuída
em seu valor estético-artístico na concepção branca-colonial-européia.
No tocante, a História da Arte pode-se perceber que geralmente a arte negra
africana não aparece nos livros de História da Arte, e, quando aparece não é
contextualizada lhe são atribuídos adjetivos como; “fetichista, primitiva,
exótica”, exceto a arte egípcia, que apesar do Egito ser um país do continente
africano, os ocidentais durante muito tempo o trataram como “não África” e,
quando começaram a tratá-lo como um país africano, tentou induzir a um pensamento
de que os povos egípcios eram “superiores” aos demais povos africanos. No
século XIX, irá se intensificar a difusão de teorias como a do filósofo Hegel, em
que ele afirmava que a "África não tem história". Outros teóricos
afirmavam que as manifestações artísticas como as construções arquitetônicas
dos grandes reinos africanos, por exemplo, foram feitas por outros povos que
não africanos.
Muitas dessas teorias criadas no século XIX, ainda permeiam o pensamento
ocidental na atualidade. Muitos historiadores da arte, ainda se deixam influenciar
por essas concepções de “inferioridade da arte africana”: O venerável pai da
História da Arte em nossos dias, Ernest Gombrich, expressa também algo parecido
a um assombro quando chega o momento de falar dessas 'outras' classes de arte.
No primeiro capítulo de The Story of Art, outro texto muito usado nos cursos Fortaleza: LCR. 2003. (p.24 -25) introdutórios
das universidades, as classifica de 'estranhos começos' e as compara com a infância
de complexos artísticos mais 'maduros'. Os adjetivos que utiliza para
descrevê-las são 'estranho', 'raro', 'contra natural', 'absurdo', 'curioso', 'irracional';
os povos que as produzem são 'crianças', suas atividades são 'teatro' e seu
estado mental é de um 'conto de fadas' ou de um 'mundo de sonho'. Aqui,
portanto, a colocação cronológica está clara: se cremos em Gombrich, se trata
da expressão criadora no nível mais infantil da humanidade. Outro ponto
importante, é que devido ao fato da arte africana e a religiosidade estarem intimamente
interligados, criou-se segundo Price: “... a difundida idéia no ocidente de que
os povos das chamadas sociedades tribais não têm consciência de sua própria
história da arte, nem conversam especificamente sobre ela”.
Pode-se notar que a arte africana durante muito tempo ficou excluída do cenário
da arte ocidental; e no momento em que ela começou a fazer parte desse cenário,
foi de forma estigmatizada. Os grandes artistas considerados “mestres da arte
universal” como o Picasso, Cézanne e o Mondiglianni, criaram obras em que são
perceptível nitidamente traços da arte africana, como é caso da Mademoiselles
D’Avignon, obra do Picasso considerada o ícone do Cubismo, que possui
características estéticas das Máscaras Africanas. Ainda assim; ao invés de levar
em consideração que esses artistas tenham se deixado influenciar por uma arte
que traz uma outra releitura do belo, uma forma diferente de interpretar o
mundo, e que eles foram privilegiados por ter essa sensibilidade, coloca-se
esse fato como uma espécie de “apoio” para a arte africana. Mas vale evidenciar
o que Sodré afirmou sobre essa questão: "Vale ressaltar que, apesar da
sensibilidade do mestre Picasso vislumbrar na produção estética africana um potencial
inovador, a arte africana já era arte por suas características contextuais e
parâmetros artísticos”.
MÁSCARAS GELEDÉS
Antes de se fazer à abordagem específica sobre as Máscaras Geledés,
falar-se-á, das Máscaras Africanas de uma forma generalizada.
As Máscaras nas comunidades africanas, geralmente estão ligadas a rituais
religiosos, de guerra, de fertilidade da terra e até mesmo de entretenimento,
elas são criadas para serem vistas em movimento. Diferentemente das máscaras da
sociedade ocidental, para as comunidades africanas toda a indumentária que
cobre o corpo do mascarado é considerada máscara; e geralmente são os homens
quem dançam mascarados.
Quando esculpidas, as máscaras africanas não representam fielmente
rostos humanos como
Ibid, 02. 2001. em outras sociedades; e sim, nas suas representações elas vão
transcender o plano terreno, elas são produzidas de forma que se perceba a sua
ligação com o sobrenatural, com o divino. Mas, para as máscaras alcançarem o
seu significado aqui na terra, elas precisarão do corpo humano, é o corpo desse
ser que irá intermediar essa relação entre o mundo físico e o não físico. Essa concepção
fica explícita na citação abaixo: A máscara africana não representa,
presentifica, Lucien Stephan define a presentificação como ‘a ação ou operação
por meio da qual uma identidade pertencente ao mundo invisível se faz presente
no mundo visível dos seres humanos.’
A máscara e o corpo do dançante não simulam ser, são: ancestral
masculino e feminino, caos e força da energia cósmica controlada no espaço
ritual, bruxa ou espírito benéfico [...] o outro sobrenatural se incorpora,
mística do corpo e do rosto mascarado.
As máscaras africanas geralmente são esculpidas em madeira, a sua confecção
passa por rituais desde a escolha de quem vai confeccioná-la até o ritual de
purificação pelo qual o escultor irá passar, para que possa a partir daí,
nascer uma nova máscara em substituição de outra. Quando essas máscaras estão
expostas em algum museu, toda essa sacralidade não é visível aos olhos do
público, as pessoas só podem observá-las enquanto escultura, mas, a estética
dessa escultura tem algo de diferente como explica Luz: As esculturas africanas
em geral se caracterizam basicamente por expressarem esteticamente um conceito,
uma idéia, uma essência, para além da aparência 'realista', referem-se um
repertório de signos que muitas vezes se expressam em formas abstratas geométricas
e exploram um espaço multidimensional. As esculturas representam e invocam uma
visão do mundo, materializam forças invisíveis, representando-as . É a
'escultura dos signos', como se referiu Ola Balogun.
Dentre os vários rituais em que são usadas as Máscaras Africanas, está o ritual
da Sociedade Geledé, sociedade esta, composta e presidida apenas por mulheres a
partir dos quarenta anos. Os rituais dessa sociedade acontecem na região que atualmente
se encontra a Nigéria, que é uma região yorubá:
A Sociedade Geledé é composta por mulheres acima da idade da menopausa.
Elas são consideradas Iya-mi, nossas mães. Como tal são temidas como aje
(feiticeiras). As pragas duma mãe são as mais temidas nas sociedades Yorubá. O
poder das mulheres mais velhas na Sociedade Yorubá é essencialmente ligado a menopausa.
A menstruação é concebida como o poder generativo da mulher. Nessa concepção, o
sangue da menstruação leva todas as impurezas perigosas para fora da mulher. Quando
a menstruação pára, esse sangue é guardado dentro da mulher formando um
reservatório de poder antigerativo e anti conceptivo, ou seja, o poder de
destruir, jogar pragas e fazer feitiços.
No relato acima, quando o autor se refere à região "Benin-Nigéria",
ele está falando do atual Benin. Sobre a Sociedade Geledé há vários contos,
como o narrado pelo Maucler e Moniot: A sociedade Guelede deve apaziguar as
'Mães'. Entre as mulheres há feiticeiras que envenenam as crianças, e tornam as
outras mulheres estéreis. As mães, por outro lado, são também a força benéfica
feminina, generosa e progentitora. Esta força é o aspecto duplo do poder
espiritual das mulheres, a que o culto guelede se devota, embora os intervenientes
actuantes sejam as orações. A 'Mãe Grande', aparece mascarada de mulher barbuda
ou de pássaro. E principalmente Efé, um ser mascarado vindo do além, aparece e
canta acompanhado por um trio de tocadores de tambores e membros da sociedade,
o qual tem o poder de neutralizar os malefícios dos feiticeiros. No dia seguinte,
na fase diurna, os mascarados Guelede saem e dançam em grande número. Desta vez
é o divertimento dos espectadores que conta e a atmosfera é de descontração.
A fecundidade e a maternidade inspiram muitas destas máscaras, e também
uma galeria de retratos típicos, com expressões fisionómicas relistas: o jovem,
a rapariga galante, o sedutor, o comerciante, o iniciado no culto do deus Xangu
[...] As sociedades Gueledes mantêm assim uma produção importante e sempre
renovada de máscaras em madeira.
Veja-se a análise da Ribeiro sobre a Sociedade Geledé:
De acordo com a autora, a sociedade das Geledés, simboliza aspectos
coletivos do poder ancestral feminino é dirigida 'pelas erelu, mulheres detentoras
dos segredos e poderes de Iyami, cuja boa vontade deve ser cultivada por ser
essencial à continuidade da vida e da sociedade, o culto tem por finalidade
apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos femininos; favorecer a
fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de conduta.'
Através das citações acima, nota-se que os autores fazem referência ao
poder feminino ancestral e ao fato das Geledés serem temidas na comunidade
Yorubá. Diferentemente da sociedade ocidental, também se percebe que a Mulher
na sociedade africana tem papel de destaque, pois para essas comunidades, a
mulher é o ser que gera a vida como afirma Lopes:
Sem o poder feminino que tem a mulher, sem o princípio de criação não brotam
plantas, os animais não se reproduzem, a humanidade não tem continuidade. Logo,
o princípio feminino é o princípio da criação e preservação do mundo: sem a
mulher não existe vida, devendo por isso a mulher ser reverenciada e neste culto
Gélèdes temos representada a relação com a reverência que os homens têm para
com as mulheres, já que somente elas criam, transformam, modificam, as coisas.
Em : http//www.mulheresnegras.org/santos3 comunidades yorubanas, nos rituais em
que são utilizadas as máscaras, quem dançará mascarado serão os homens:
Os mortos do sexo feminino recebem o nome de Ì yámi Agba (minha mãe
anciã), mas, não são cultuados individualmente. Sua energia como ancestral é
aglutinada de forma coletiva e representada por Ì yámi Oxorongá chamada também
de Ì yá Nia, a grande mãe. esta imensa massa energética que representa o poder
da ancestralidade coletiva feminina é cultuada pelas 'Sociedades Gëlèdé',
compostas exclusivamente por mulheres, e somente elas detêm e manipulam este
perigoso poder. O medo da ira de Ì yámi nas comunidades é tão grande que, nos
festivais anuais na Nigéria em louvor ao poder feminino ancestral, os homens se
vestem de mulher e usam máscaras
É evidente que no continente africano são diversos os rituais em que as
Máscaras são utilizadas, nesse trabalho falou-se apenas das Máscaras que são usadas
nos rituais da Sociedade Guelede. Um dos fatos mais importante que já foi
mencionado nesse trabalho, mas que será retomado novamente nesse parágrafo; é
que através da estrutura política e dos rituais dos mascarados na Sociedade
Gueledé, fica explicito a importância da mulher para as comunidades yorubás na
África. Trazendo esse aspecto para ao contexto brasileiro, em que se instituiu
uma sociedade patriarcal e cristã que por sua vez, se tornou uma sociedade
machista, fazendo com que em pleno século XXI o machismo ainda impere na sociedade
brasileira, percebe-se que nas Comunidades de Santo ainda se preserva o
respeito e a admiração pela Mulher. São as mulheres que quase sempre presidem
esses Terreiros, ainda são elas as responsáveis pelos saberes e ensinamentos ancestrais;
e a relação que elas estabelecem com os homens não é uma relação de superioridade,
mas, sim, de complementaridade entre os dois gêneros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS É notório o quanto de belo há na arte africana,
mesmo que nesse trabalho apenas se tenha estudado uma das suas várias formas de
produção e manifestação artística. As máscaras africanas enquanto obras de arte
possuem uma função eminentemente social. Quando os africanos de diversas partes
da África chegam ao Brasil na condição de escravos, eles trazem consigo toda
uma ancestralidade que será expressa nas variadas manifestações culturais e
religiosas que eles recriam em território brasileiro. Segundo Oliveira, "na
Diáspora africana o que vem para o Brasil não é a estrutura física-espacial das
instituições nativas africanas, mas os valores e princípios negro-africanos”.
http://espacoeducar-liza.blogspot.com.br/2010_05_23_archive.html